[:pb]A saga da resiliência do povo indígena Avá – canoeiro é um retrato da capacidade de resistência dos que nunca se renderam pacificamente às inúmeras invasões e violações ao seu território Taego Ãwa, se tornando por isso um povo nômade desde pelo menos o século XVIII. Hoje os Avá formam um grupo de menos de vinte pessoas, divididos em dois grupos, Araguaia e Tocantins. O documentário da cineasta Marcela Borela e seu irmão Henrique Borela surge a partir de fitas Vhs e fotografias encontradas na UFG de registro de contatos de diferentes épocas com os Avá, que após uma aglutinação imensa de material decidem então realizar o filme. Uma tarefa, diga-se de passagem, nada fácil, por vários motivos. Desde o primeiro contato da equipe com a comunidade, o próprio processo de produção à então árdua tarefa de edição de um material imenso com o montador Guile Martins, o filme nasce a partir de inúmeras dificuldades.
Taego Ãwa está longe de ser um documentário expositivo, no sentido informacional, sobre a luta dos Avá, fazendo com que o espectador leigo sobre o tema sinta uma lacuna forte de compreensão da situação, e essa também parece ser a proposta do filme, instigando assim a confrontação desse conhecimento e uma consequente pesquisa desse espectador após a sessão. É talvez mais próximo do documentário observacional que o filme possa ser entendido o que está intimamente ligado à relação entre os realizadores e os sujeitos observados. Não se ouve em nenhum momento as vozes dos cineastas colocando perguntas e direcionamentos aos Avá, ainda que essas tenham acontecido, e o filme consegue ter uma naturalidade impressionante. Um tema que sempre fez parte das discussões sobre o documentário são as relações de poder entre realizador e sujeitos documentados, e se seria possível uma construção fílmica da representação que subvertesse essas posições como tem se proposto as experiências de dispositivo proliferadas nos documentários contemporâneos, e nesse sentido, o viés antropológico e etnográfico do Taego Ãwa suscita duplamente essa questão já discutida no bojo das ciências sociais, trazendo uma referência clara ao tão polêmico, criticado mas nunca despercebido realizador francês Jean Rouch.
Além da matéria viva do filme, a referência a Jean Rouch está na própria dimensão metalinguística do filme que concebe sua proposta levando o material de arquivo, os vídeos de anos passados, fotografias e jornais ao povo Avá e captando suas reações frente a esse material. E mesmo imagens que haviam sido gravadas recentemente pela própria equipe também são exibidas na aldeia. Apesar da proposta ser o cerne principal do filme como forma de ativação da memória coletiva daquela família, unida por aquela realização, possuir uma potência narrativa, esse recurso parece se perder um pouco ao longo do percurso, principalmente nas cenas em que os índios assistem às cenas do próprio filme ou quando assistem às manifestações indígenas feitas em Brasília pela TV, pois elas acabam sendo cortadas de forma rápida sem que os índios tenham tempo de colocar seus descontentamentos e suas opiniões. Essa observação se relaciona também com a dificuldade enfrentada pela edição nesse processo. O mais interessante do documentário é a forma como ele cria um espaço ao povo Avá de volta às suas raízes e um questionamento sobre elas, como numa das cenas mais marcantes em que a família faz suas pinturas tradicionais com tinta de jenipapo, e o ancião da tribo, Tutal, falecido ano passado, tira a roupa que estava vestindo pra fazer a pintura corretamente e diz que não tem vergonha da sua nudez, como possuem os mais novos. Esse momento traz a simbologia de toda aculturação violenta pela qual sofrem os povos indígenas como um todo, descendentes e os verdadeiros donos do território brasileiro que foram ininterruptamente genocidados e desapropriados desde os primeiros colonizadores até os neocolonizadores.
Quando falamos dos povos indígenas, estamos falando sobre formas de vida que fogem ao padrão urbano-industrial imposto como único caminho possível, e que por esse mesmo motivo foram continuamente negados no seu direito à vida. “Viviam em plenitude” como diz Darcy Ribeiro, de forma autônoma, compartilhada, sendo fiéis à natureza, especificamente os Avá sobreviviam da agricultura e conforme foram se tornando nômades foram impossibilitados dessa, se tornando então caçadores e com as sucessivas destruições às matas pelos fazendeiros e colonos ilegais, os animais também foram se extinguido. O número de mortes na população indígena apenas vem aumentando pois a certeza da impunidade dos assassinos é um fato que comprova a gravidade do racismo no Brasil. E os Avá, por serem tidos como índios negros sofreram duplamente esse preconceito quando nem mesmo indígenas eram considerados. Apesar de beirararem a extinção e de sofrerem todos os danos do racismo, os Avá sobrevivem e mais do que isso, continuam lutando pela sua etnia e pela volta à sua terra Taego Ãwa recentemente demarcada pela Funai. O documentário de Marcela Borela, nos fornece provocações, não respostas, e nesse mesmo ponto encontra sua força poética-política. [:]