[:pb]Existe uma certa fadiga mental em alguém que se propõe escrever sobre filmes engajados. Pois, quando o filme é bem sucedido e nos impacta, se de fato estivermos abertos a esse contato, ele pode nos proporcionar uma reflexão que passa quase sempre batida por nosso piloto automático, e basta adentrarmos conscientemente um pouco no nosso próprio universo para passarmos por uma cadência de sentimentos de inquietude. E Outside, o curta documentário de Letícia Bina é um desses filmes bem sucedidos. É através de Jaqueline, ex presidiária e mãe que representa o que o patriarcado condena em uma mulher, que vivenciamos alguns dos condicionamentos enfrentados pelo “ser mulher”, num recorte racial e de classe.
Fala alto, já foi traficante e de temperamento fugaz, Jaqueline diz que já chegou a abandonar os filhos e que o tempo na prisão serviu de lição pra ela. Quanto a esse último, Jaqueline, que hoje trabalha e voltou a casa e aos filhos, duas coisas que a classificariam como “regenerada” pela sociedade capitalista, machista e racista, é provavelmente uma das poucas exceções dos que passam pelo sistema carcerário brasileiro. E por ter sido uma traficante e ter abandonado os filhos foi duplamente marginalizada, pois aos homens é dada a naturalidade de ambos, mas enquanto “mãe” seu abandono é considerado absurdo.
Acompanhamos de perto Jaqueline em sua casa com sua família, na sua comunidade, e no seu trabalho e ao mesmo tempo em que o documentário segue observando, como na cena em que todos almoçam no quarto e conversam sobre o momento em que sua jovem irmã, ou prima, terá seu bebê também percebemos que a cineasta não possui “vergonha” ou algum receio estético de mostrar seus direcionamentos e suas perguntas, algo que alguns documentaristas veem possuindo, e por esse mesmo motivo o curta se mostra ainda mais sincero.
Podemos sobretudo analisar a reintegração das ex presidiárias, e os diferentes níveis de exclusão que passam essas mulheres quando Jaqueline fala, em outras palavras, que prefere não misturar as coisas pois algumas pessoas no seu trabalho, que é um restaurante, se sentem ultrajadas por estarem trabalhando no mesmo local que ela. Se quando falamos dos “corpos femininos” concebidos a partir de uma limitação, deve-se pensar na série de limitações a mais que uma mulher negra e pobre da periferia encontra em seu caminho. Tornar-se traficante é apenas uma das muitas consequências de uma sociedade exclusiva em que impera o mito da meritocracia, das oportunidades “iguais” e do “desenvolvimento” pessoal.
“Pra ele tá bom, mas Eu quero mais!” diz Jaqueline e sai do quadro.
Jaqueline não se acomoda, ela luta.[:]