O pêndulo entre É Minha Cada Parte do Meu Corpo e Diários De Classe – por Mia

Em um texto* que li pouco antes de começar a escrita desse meu, Sophia Branco contava, no site da revista Continente, que uma das principais astúcias do Fincar  – Festival Internacional de Realizadoras – foi, para além da afirmação do cinema de mulheres, a atenção para com a diversidade, o panorâma das diferenças que nos formam. Penso imediatamente nas escolhas da abertura do Fincar como anunciadoras das diretrizes do festival em sua segunda edição. O São Luís que abriu suas portas para o público com a sessão É Minha Cada Parte Do Meu Corpo, compilação de curtas que delineiam um olhar feminista, transfeminista e lésbico sobre o corpo, foi o mesmo que assistiu, na seguida, ao longa Diários de Classe, com direção de Maria Carolina da Silva e Igor Souza, que acompanha o universo de três centros de alfabetização para adultos em Salvador: um para mulheres encarceradas, uma escola vinculada ao sindicato das domésticas e uma dentro de um abrigo para menores.

   Na sessão de curtas, a pluralidade das linguagens – houve animação, performance gravada, futurismo – e a firmeza no tom da mensagem evidenciam o quanto são vibrantes as questões de gênero e de sexualidade no nosso tempo. O corpo é o campo de disputa e é preciso libertá-lo de forças políticas que querem dominá-lo para que ele sirva apenas em função do trabalho, da reprodução, do lucro. As super-heroínas usam seu corpo para dizer NÃO ás normas que as interpelam, como nas animações Sra. Belly (dir. LIN, Chih-Yu) e Rebellious Essence (dir. Ana Cigon) onde uma mulher foge do mundo bizarro da beleza hegemônica que tenta trucidá-la (literalmente) e uma figura felina questiona a necessidade de ser classificada entre masculino e feminino para conseguir integração social e legitimação (na forma de um documento que pecisa ser emitido na trama do filme) ou no live-action Quanto Craude no Meu Sovaco (dir. Maria Eduarda Menezes e Fefa Lins) em que um sovaco feminino é sucessivamente atacado por forças que querem ditar sua aparência retirando seus pêlos. Os rostos na tela dão a ver uma geração que acolheu e difunde às críticas à normativização e coisificação dos seres e dos sentidos e cria espaços onde rege seus próprios referênciais, subjetividades compartilhadas onde reside uma incubadora potente de estima e afirmatividade, usando seus corpos como ponta de lança de um novo modo de vida. Uma reprogramação radical do organismo-sistema, um contágio, citando diretamente ao filme X-Manas, dirigido por Clarissa Ribeiro em uma parceria Rio de Janeiro – Recife que une futurismo, sub-cultura, pós-pornô, entre mais coisas que eu não sei, ou talvez eu não deva tentar classificar. 

   Esse corpo que foi dividido, dominado e significado por outros é também o corpo de Kalor Pacheco em seu filme Eu Tive Que Engolir or Engolir Porra Nem1a, integrante da sessão, onde a artista está exposta nua no centro da imagem veiculada originalmente em um site de sexo ao vivo. O lugar do corpo da mulher negra dentro da distribuição sensível da sociedade brasileira, que é tão conhecido por nós através de um imaginário erotizante que se fundou junto com o inicio da exploração de pessoas negras como mercadoria, no período da escravidão oficial, e é mais uma vez afirmado pelo contexto de exibição da imagem – os sites de web sex – fica colocado em crise ante a presença pulsante de Kalor, instigando a sensação de desconcerto ou constrangimento que vem pela exarcebação do discurso opressor, que Karolina usa como arma discursiva em sua obra. Como uma piada racista ou machista que, enunciada firme e seriamente pelo sujeito a quem ela dana, é de repente desvelada em todo o seu mal, estranhada, a imagem da Kalor nua e pintada de vermelho, engolindo todo o leite que é atirado de cima dela, com olhos que insistentemente vão voltar-se para a camêra em vários momentos, começa a parecer fortemente incômoda para a plataforma que a cedia – o site de pornô –, porque cristaliza em si toda a violência contida no modelo de subjetividade delegado às mulheres e em especial às negras – o objeto sexual, sensual, voraz e tantos outros adjetivos –, como mostram também os comentários colados na tela, mensagens recebidas pela artista, que vão em progressão, de cantadas à textos incomodados, ofendidos ou defensivos. Explorando o imaginário objetificante até seu ponto máximo, a obra toma a forma de uma ebulição onde, inflado demais, esse discurso opressor acaba por romper-se na frequência de Kalor, que cuspindo para fora e para a camêra todo o leite que engolia até então, parece expurgar de si o estigma, lançando-o de volta para o observador.

   Me chamou atenção também os corpos que estão presentes nos curtas X-Manas e Latifúndio (dir. Érica Sarmet) fora do padrão, negros. Sei, ou deduzo pela linguagem, que são curtas que saíram das universidades ou de acessos ao mundo que lhe cerca, e penso mais uma vez nessas obras como um retratro do tempo e do resultado de alguns anos de heterogenização do ensino superior através das políticas afirmativas. Deslocar os corpos e os lugares, bagunçar os lugares simbólicos, tomar os materiais, parecem ser metas tanto dessas medidas estatais, quanto uma ação muito consciente daquelas que através delas chegam a um espaço de discussão como as universidades, ou se propõem a produzir cinema, sabendo que adentram um universo quase sempre dominado pelo mesmo perfil masculino e branco. O primeiro deslocamento é evidente: quem entra na universidade e quem vai direto para a fila dos empregos que não exigem formação e começa desde mais cedo a trocar força por salário. O segundo deslocamento vem da maravilhosa insolência daquelas que querem mais do que lhes “dão”, sempre: a que sujeitos é concedido o direito do tempo, da afirmação de um enunciado, do experimento estético, do prazer ou do delírio. Os sujeitos em X-Manas e Latifúndio afirmam a necessidade do inominável, do indefinido. Nesse caminho, partem de uma unidade básica – o corpo, a base de intermédio com o mundo – para pensar as divisões primordiais desse esquema de distribuição desigual de poderes.

  Em Latifúndio, por exemplo, se fala de sujeitos de ânus interditado que controlam os sujeitos sem essa interdição, numa fabulação que inverte o vetor tradicional do complexo corporal sem pênis/com pênis. O zoneamento do corpo, a interdição de áreas e a consequente objetivação de uma ferramenta que possui por natureza a potência da imprevisibilidade, da reinvenção no contato com tudo que é outro – propriedades perigosas pois incontroláveis – funciona a favor da disciplinarização do corpo para se adequar a um sistema (nas palavras delas, CI$tema) cujo pilar é uma fixidez de referentes e significados – isso serve para isso, aquilo só pode servir para aquilo – que se expande das capacidades mais básicas do corpo à toda a organização do tecido social local e global– aquilo que Rancière chamaria partilha do sensível ou o esquema que dita quem ocupa que espaços e quem não tem espaços, quem fala e quem no máximo, ouve. Nesse sentido, a reeducação da sensibilidade tátil enquanto um lugar de afetação mútua entre o sujeito e o meio, a redescoberta desse nosso corpo enquanto um ente totalmente vivo e vibrante, em todas as suas partes, está, nesses filmes, vinculada à ideia de desmecanização e libertação do sujeito também no esfera social, e é como ato político que ambos terminam em celebrações orgásticas de corpos misturados.

   Ponta de lança é talvez a palavra que me persegue na tentativa de uma definição do que foi a primeira sessão do fincar. A lança é um objeto que aponta para frente e, muito importante, desbrava um território potencialmente perigoso, desconhecido. Uma vez fixada no chão, no lugar onde foi lançada, essa ferramenta chama para que se venha até ela, aguda, cortante. É um símbolo de vanguarda, impáfia, coragem: a imagem mesma da gang fabulosa que desfila seus corpos em uma rua escura perante a câmera de X-Manas, afrontosa. É o que há de novo e pulsante, por isso talvez, sinta o chamado de trabalhar na afirmação da ruptura e, como alguns dos filmes, na estética do choque trazida pelas cenas de nudez e orgia, que fizeram rubras as faces dos pais da realizadora de um dos curtas da noite, presentes na sessão – e não só deles. É porque aspiram a uma destruição completa desse sujeito que existe em nós, para o afloramento de um outro, que se contrapõem com violenta negação a toda base segura que nos cerca, ao conforto de uma sessão de cinema, ao que podem ser alguns dos nossos preceitos e expectativas. Fundar outra política fundando outra estética.

   Me parece então, cada vez mais um recorte contextual o que atravessa as questões de estratégia discursiva, luta e pauta entre algumas dessas obras e Diários de Classe. 

 Choque não é o remédio para as mulheres de Diários de Classe, o futuro para o qual apontam as obras anteriores precisa vencer a barreira do passado que anda no encalço dessas mulheres cansadas. Em situação de vulnerabilidade, o espaço onde encontramos-nos com elas, as salas de aula, é antes de tudo – ou deveria ser – espaço de acolhimento e pausa, para poder ser, então, espaço de questionamento, avanço, subversão. O futuro que pode ser visualizado por Maria José e Vânia Lúcia, mulheres com mais de 30 anos que estão sendo alfabetizadas, é estar inserida aqui, nesse presente imperfeito, canalha, mas poder sentir-se inserida nele e em suas questões, para suprimir essa primeira força de zoneamento que teima mantê-las no lugar do apagamento, do apartamento, do corpo que não é mais que prestador de serviços domésticos. Até na postura da mais jovem das personagens, Tifany, menina expulsa de casa pela cis normatividade e transfobia, o que se ressalta é a estratégia da resiliência, de uma contaminação mais lenta – não por isso menos potente – do que o desejo iminente de afronte. Tifany organiza as contradições em seu discurso – a violência praticada pelo irmão, o desejo de não desestruturar a família, o afeto pela mãe, o apoio sutil dos colegas da escola, a decisão de saída de casa – e cria uma narrativa forte justamente no absurdo de sua capacidade de contar sem cortes na voz,  íntegra, com as palavras que domina, os significados que ainda sequer foram alcançados por aqueles ao seu redor. Quando ela conta que está segura de sua identidade e, vestida com trajes socialmente entendidos como masculinos diz, frente ao espelho, “me sinto uma mulher vestida de homem”, o poder é absurdo, e ele está colocado nos mais simples termos possíveis. Diários de Classe  é, talvez, um filme de coletoras.

   Diz uma analogia que gosto muito que, nos primórdios a primeira ferramenta criada pelas pessoas que surgiam no mundo não foi, como imaginado, a lança, o objeto para obtenção do alimento via desbravamento e caça, mas sim a bolsa, o receptáculo de coleta. A ação complemantar à ideia de coleta é a caminhada voltada ao pequeno, ao pedaço. A coleta busca a sobrevivência com o que é possível reunir do solo, as sementes e algumas raízes, junta em sua bolsa os itens que dá para achar pelo caminho para compor com eles seu meio de força. As mulheres de Diários de Classe são coletoras. O filme de Maria Carolina e Igor é bolsa em seus gestos. Pouco interperlador no seu estilo documentário direto, vai guardando os momentos com essas mulheres para montar seu panorâma. Em um momento, assiste às aulas da posição de uma aluna, quieto; em outro, está no canto da sala, observando atento ao debate; tem mesmo o instante em que houve atento ás instruções de Tifany sobre como deseja ser filmada – embora esse plano narrado fique para sempre no lugar da nossa imaginação. Em outra cena, num debate sobre machismo e homofobia em sala de aula, as mulheres põem em seus termos ideias de respeito e igualdade quando um evangélico começa a discursar sobre a crença na submissão e pecado. O filme dá então uma mostra de sua resposta lenta. Espera que o homem termine de falar, não se preocupa em responder na mesma hora. Confia na imagem de suas personagens como desconstrutora implacável de qualquer argumento no sentido conservador, machista, punitivista. Mais tarde, reaparece a questão com Tifany, viva, sobrevivente, em frente â cámera contando da sua história. 

   Diários de Classe assume sua forma sutil, como já arrisquei, sabendo que sua carga temática é suficientemente densa e difícil. Parece dar alguns passos atrás para permitir que as imagens se infiltrem em quem as vê, em processo de decantação. Assim, dose após dose acompanhamos Maria no seu trabalho de formiga contra o gigante labiríntico sistema penal. Livro do código penal em mãos, tentando minimamente dominar o vocabulário que lhe oprime há meses sem resposta, na falta de um defensor público presente, no absurdo de uma acusação sem base sólida, mas que é suficiente para enviar uma mulher negra para a privação de liberdade por, possivelmente, anos. Está tudo posto na acumulação das imagens: a violência do sistema penitenciário e seus paliativos débeis. É também um filme que aposta na força da parceria entre mulheres para inserir um pouco de esperança no cenário catastrófico da desigualdade que retrata. Pouco se vê homens na tela, pouco se houve vozes que não sejam dessas mulheres que buscam se fortaecer nas situações de adversidade, mesmo que se fortalecer seja proferir uma mensagem dura, como na cena da discussão entre as alunas do EJA do sindicato das trabalhadoras domésticas. De forma semelhante, o filme busca se equilibrar entre a dureza da denúncia e a ternura com as companheiras-personagens, que constrói um arco emocionalmente intenso, já que empatizamos imeditamente com cada uma das mulheres, alunas e professoras. Existe uma força de afeto que paira como clamor por mais atenção e cuidado com as mulheres negras, lado a lado com apontamentos contundentes sobre a estrutura sistêmica do problema.

  Entre escolhas mais disruptivas ou sutis, a cada situação cabe uma proposta fílmica. Assim como não é de intenção desse texto colocar uma em detrimento de outra, mas, retornando ao início, observar o panorâma de diferenças entre nós, uma vez que não há uma só ‘linguagem feminina’ ou modo de ser feminino, que nossos modos de ser são atravessados pelos lugares em que estamos, as situações, às vezes distantes. A distância, retomando ao conceito que tomo emprestado de Rancière de partilha do sensível, nesse quadro, é uma ideia polisemica, pois pode partir tanto do sentido de uma desigualdade na distribuição do espaço, quanto, em outro campo, do espaço delimitado para si mesmo por cada um, da subjetividade que é criada a partir do reconhecimento de uma certa distância delimitada em relação ao outro, que é importantíssma para o reconhecimento do lugar do ‘eu’. Aposto na segunda possibilidade para pensar nas diferenças entre as duas sessões de abertura do Fincar, acreditando em uma fricção rica entre elas. 

   

 

 *O texto de Sophia Branco, publicado no site da revista Continente: http://www.revistacontinente.com.br/secoes/cobertura/a-reinvencao-do-cinema-pelas-mulheres